O Ato da Pesquisa como Exercício de Desenvolvimento Humano e Cidadania
- Leonardo Campos
- 20 de ago. de 2024
- 8 min de leitura
Saiba mais sobre as peculiaridades da pesquisa científica e seus desdobramentos sociais.
Professor Leonardo, vivemos num contexto de desvalorização da pesquisa científica. Em seu ponto de vista, há um exercício cidadão no ato investigativo em questão?
Pesquisar é exercer a cidadania. Uso bastante o exemplo do filme Erin Brockovich: Uma Mulher de Talento, para refletir sobre o assunto. A personagem, inspirada numa pessoa que realmente vivenciou toda a história da narrativa, saiu de uma realidade caótica como mãe solitária, com três filhos e sem perspectiva, caindo de paraquedas numa situação que sequer esperava ganhar proporções tão grandes. Ao chegar no ambiente de trabalho que lhe foi ofertado pelo advogado de um caso judicial em que esteve envolvida, demonstrou faro de investigação ao vasculhar criticamente os documentos de um arquivo. Na pesquisa, mudou a sua vida e a existência das pessoas que tinham alguma conexão com a história daqueles documentos. O mesmo ocorreu quando desenvolvi um projeto sobre pesquisa no Ensino Médio numa escola particular do subúrbio de Salvador. Os estudantes do 3º ano passaram as quatro unidades do ano letivo envolvidas num tema selecionado desde a primeira semana de aula, num processo que os preparou para a entrada na vida acadêmica no ano seguinte. O interessante é que cada um teve como exercer a cidadania escolhendo os temas que lhe eram relevantes: o preconceito contra garotas no futebol, o assédio nos transportes coletivos, o atendimento das unidades hospitalares públicas do bairro, dentre outros. Foi uma iniciativa engrandecedora e única para todos, inclusive para os professores e gestores, mesmo com todas as burocracias e impasses da instituição.
Uma de suas críticas ao sistema educacional é a maneira como os jovens aprendem a pesquisar, desde a fase escolar. A investigação mais organizada deve começar no Ensino Médio, para melhor preparar os estudantes na vida acadêmica?
Não podemos dizer que são todos os casos, mas geralmente o que temos é a solicitação de pesquisas que não problematizam, sabe? O professor pede que estudante pesquise determinado tema e com isso, o jovem vai para a internet, copia um amontoado de informações e não processa sequer o que leu. Isso não é de agora. Em minha época, por exemplo, fazíamos pesquisa na biblioteca com as famosas enciclopédias, anotávamos o que era solicitado, produzíamos uma capa, na folha de papel pautado ou ofício e pronto. Dava para aprender durante o processo? Sim, mas no geral, era uma prática de baixo nível crítico. E isso ainda acontece muito nos dias atuais. Quando o estudante chega na vida acadêmica, fica facilmente irritado por saber que precisará ler bastante sobre um tema para desenvolver o mínimo raciocínio para compor um referencial teórico de projeto, por isso tanta dificuldade, mitos e obstáculos no momento que é preciso compor um trabalho conclusivo de curso, artigo, ensaio, dentre outros.
Para quem vai começar os esboços do TCC: quais são os principais pontos necessários para um projeto de pesquisa assertivo?
Ler bastante e sondar o que já se tem publicado sobre o assunto. Buscar um diferencial e trazer algo de relevância possa ajudar a tornar a pesquisa peculiar e transformar a empreitada num trabalho de referência para os próximos interessados no assunto. Com isso mapeado, o pesquisar precisa estabelecer um problema coeso e coerente, uma justificativa assertiva, traçar os objetivos, isto é, o que é geral e os específicos, compreender os processos metodológicos necessários para estabelecimento dos resultados, organizar o orçamento e o cronograma detalhadamente, observar os textos que serão a base para o referencial teórico, investir numa revisão geral de regras da ABNT e gramaticais, além de delinear bem os elementos pré-textuais, tais como resumo, capa, folha de rosto, palavras-chave e sumário. Há outras peculiaridades, mas vejo os pontos mencionados como os essenciais.
E o estudante que se encontra diante do processo de pesquisa, pode escolher mais de uma modalidade?
Pode. São numerosas as modalidades de pesquisa e tentarei resumir de maneira panorâmica, ok? Na pesquisa básica, o investigador tem como objetivo, a geração de conhecimentos novos sem aplicação prevista. No caso da aplicada, objetiva gerar conhecimentos para aplicações práticas direcionadas ao processo de solução para problemas específicos. A quantitativa é a modalidade que considera tudo quantificável, o que supõe a necessidade de traduzir opiniões e números em informações para classificação e análise. A qualitativa considera que existe uma relação entre o mundo e o sujeito pesquisador que não pode ser traduzida em números. A empreitada descritiva coloca o pesquisador para analisar os seus dados indutivamente. Na modalidade exploratória, temos por objetivo o levantamento bibliográfico, análise de exemplos e entrevistas com pessoas que tiveram experiências práticas com o “problema” pesquisado, tendo em vista a maior familiaridade com o tal “problema”. A pesquisa documental não recebe nenhum tratamento analítico, apenas levantamento, o estudo de caso envolve a reflexão profunda para amplo conhecimento do tema tratado, a explicativa objetiva identificar os fatores que determinam certos fenômenos, explicando o “porquê” das coisas, assumindo características das pesquisas experimentais e “ex-post facto”, isto é, quando o experimento é realizado depois dos fatos. Importante observar que geralmente dividimos os tipos de pesquisa do ponto de vista de sua natureza, da forma de abordagem do problema, dos objetivos e também do ponto de vista dos procedimentos técnicos. É um mundo de possibilidades, expostas nos manuais que deixarei de indicação para você divulgar aos leitores, combinado?
Não adianta compreender a teoria sobre o método de pesquisa e não aplicar adequadamente as regras no momento da escrita, na estruturação. Muito valiosa a sua dica sobre a conexão entre capítulos e seções.
O que o estudante precisa assimilar é a incoerência de uma colcha de retalhos. Muitas vezes, fazem referências soltas, aleatórias, apenas para constar no trabalho, mas o texto em si não dialoga com aquilo que é selecionado. As seções parecem blocos colados de coisas diferentes que não se conectam. Tem gente que até lê muita coisa, mas não sabe fazer associações e aproveitar o manancial teórico que possui para enriquecer o trabalho. Quem se entrega ao trabalho de pesquisa não pode ser preguiçoso ou omisso com sua responsabilidade. É preciso gestão do tempo para pesquisar. Analisar tudo e criar conexões num movimento gradativo, onde as coisas são reveladas parcialmente até a chegada dos resultados.

Um dos destaques do encontro foi ressaltar a importância da apresentação, mas também falar de ética, em especial, a parte de fornecer presentes para a banca. É algo geral discutido no âmbito acadêmico ou parte de suas experiências como orientador de projetos?
É algo discutido por muitos envolvidos no mundo acadêmico e parte da experiência como orientador há alguns anos. Muitos estudantes se sentem inseguros em suas apresentações e gostam de criar uma boa impressão para a banca, envolvendo-os de presentes como se com essa atitude, pudessem suprir os defeitos do trabalho ou, no caso de quem tem ótimos materiais para expor, assegurar que a sua apresentação com nervosismo será desculpada com presentes e mimos para os avaliadores. Alguns fazem sem intenção, outros agem de má fé mesmo. Por isso, sempre oriento os estudantes a presentearem apenas após o desfecho. E não deixar nada à vista para evitar constrangimentos. Vejo isso como corrupção, entende? Num outro nível quando comparado ao que se pensa sobre o assunto em política, mas é uma maneira de tentar comprar o outro para evitar reprovação.
Música, literatura, cinema. Ao longo da aula, há fundamentação teórica, mas também um painel de recursos de linguagem para a sensibilização dos estudantes. A ludicidade foi uma estratégia de manutenção da atenção e do interesse dos envolvidos?
Utilizo muito charges e tirinhas, além de poemas e música. Não são os elementos centrais, mas são oportunos veículos de sensibilização, afinal, os manuais de metodologia científica e a ilustração com outras pesquisas, boas e ruins, ainda se destacam como material básico para o embasamento de quem precisa e quer desenvolver um bom projeto. Gosto muito do poema Mestre, de Maria Luísa Silveira Teles, encontrado enquanto lia um manual para organizar as aulas de uma das turmas de Metodologia da Pesquisa, ministrada em um dos cursos de pós-graduação da UNIFTC há alguns anos. Tem também a canção Os Argonautas, de Caetano Veloso, conhecida pelo belíssimo verso “navegar é preciso”, ótima para refletir sobre a postura e a necessidade da pesquisa no desenvolvimento das sociedades por meio da busca pelo conhecimento através da investigação. Uma das possibilidades interpretativas desta música, aplicada ao contexto em questão, é a ousadia de se navegar no “oceano” da pesquisa. E têm os filmes também, narrativas importantes para o processo de sensibilização do pesquisador.
E já que estamos falando de cinema e educação, conta para os nossos leitores sobre o projeto em livro, uma seleção de filmes que sensibilizam a compreensão da pratica da pesquisa.
É um projeto que realizado desde 2017 e atualmente, está entre os possíveis direcionamentos da minha pesquisa para o doutorado. Filmes não ensinam a pesquisar, não é essa a proposta, mas utilizo narrativas cinematográficas e televisivas para engajar, sensibilizar os estudantes no desenvolvimento de uma pesquisa. Já mencionei Erin Brockovich, que é o filme de abertura deste projeto, uma história para se discutir objetivos, justificativa, erros e acertos em procedimentos metodológicos, pontos que podem ser vistos em filmes que discutem hipótese e problema, tais como Fim dos Tempos, de M. Night Shyamalan, ou a ética na pesquisa, presente em Do Fundo do Mar, uma produção que não imagino as pessoas pensando didaticamente, mas é um filme de aventura sobre tubarões modificados geneticamente para a fabricação de uma enzima que pode curar uma enfermidade e salvar a vida de muitos seres humanos, algo que requer um preço ético muito alto. Histeria, O Óleo de Lorenzo, Kinsey: Vamos Falar Sobre Sexo, para falar sobre bibliografia, procedimentos de pesquisa, juntamente com as possibilidades de uma hipótese e seus métodos em O Nome da Rosa. Ah, a importância de compreensão do poder do conhecimento em A Guerra do Fogo e outras discussões em Clube de Compras Dallas, Quase Deuses, Mãos Talentosas, além das estratégias de manipulação dos dados investigativos em séries e filmes policiais. Tem também a construção de hipóteses em dramas médicos.
Realizar uma pesquisa também requer inteligência emocional, ao menos foi uma das coisas que pude aprender enquanto assistia ao curso. E o celular, que deveria ser um aliado, parece que se tornou um antagonista do processo?
É o nosso Dilema das Redes, como expõe bem o documentário disponível na Netflix. As pessoas transformaram a tecnologia que deveria ser de grande apoio numa maldição. Ao assistir a apresentação, você deve ter percebido a tirinha que usei para reflexão, lembra? Pois bem, quando a pesquisa é em celular ou computador, as pessoas se desorganizam, envolvidas com redes sociais, conversas dispersivas em whatsapp, dentre outras coisas que as fazem se bifurcar e se perder pelo trabalho. É preciso muita postura e adequação. Sempre indico usar música instrumental para estudar e escrever, um apoio grandioso para a concentração. Outra coisa é ter um diário de bordo com o passo a passo do trabalho, anotando sempre tudo que leu e fazendo conexões. Mapas mentais são os meus recursos prediletos para organização da pesquisa.
Outro detalhe importante, professor, foi observar o seu destaque minucioso aos elementos prévios de um projeto e dos trabalhos conclusivos e artigos, em especial, as palavras-chave.
Os elementos pré-textuais são importantes porque mapeiam o trabalho. Quem escreve deve pensar que seu material será lido, não engavetado, como de fato ocorre com muitas produções. Tem os avaliadores e acredito que o ideal é produzir para ser referência aos próximos interessados no assunto. Por isso, um bom resumo é importantíssimo na condução da pesquisa. Outra coisa é o uso de palavras-chave, também conhecidas por unitermos ou descritores, elementos que situam o trabalho em fontes de busca, seja em programas de biblioteca ou na internet. Se houver omissões ou excessos, com certeza o trabalho se tornará nublado na indexação, e, consequentemente, será mais complicado de ser encontrado para apreciação. Um caminho é criar termos que utilizaríamos se fossemos procurar algo semelhante ao nosso trabalho. A dica é utilizar terminologias conectadas com as ideias centrais de sua pesquisa.
Entrevista concedida ao jornalista Emerson Miranda na ocasião de um dos encontros do Descomplicando Conteúdo da UNIFTC, realizado ao longo do semestre 2021.2.
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